sexta-feira, outubro 03, 2008

Queridos desconhecidos

Em menos de meia hora estavam íntimos. Tudo que sabiam um do outro ia até a primeira página. Ela, divorciada aos 25. Ele, pai solteiro aos 26.

Tudo fora rápido. Uma troca de olhares antes de começar o filme. Um esbarrão, uma súbita impressão de que se conheciam de algum lugar.

Ela, corou e sorriu embaraçada. Ele, tímido, apenas balbuciou um pedido de desculpas. Coincidentemente, iam para o mesmo lugar: tomar um espresso na bomboniere da livraria ao lado. Caminharam lado a lado por alguns instantes até ensaiarem um diálogo. Tudo muito superficial, alguns comentários sobre o filme, previsão do tempo...

Primeiro gole de café e um sorriso se estampou no rosto dela. Lembrou de uma cena hilária. Ele, impressionado, só conseguia reparar na sua boca. Aqueles lábios rubros, carnudos, faziam um conjunto perfeito com o seu nariz e seus olhos.

Ela percebeu e trocou de assunto. Tentou lembrar de onde se conheciam. Amigos em comum? Faculdade, praia? Amigo do ex? Não, não queria lembrar daquele canalha agora. O desconhecido era lindo. Aquele olhar de cachorro pidão a seduzia. A situação a envolvia.

O café acabou com aquele gosto amargo. O assunto também já estava chegando ao fim. Só restou um petit four no pires e um sorriso já sem graça. Ele pegou na sua mão, se aproximou. Os corações descompassaram, o sangue pulsou mais forte. Ela tentou disfarçar. Desviou o olhar. Não era daquelas. Tinha que resistir. Não poderia se entregar a um estranho. Não, não pode... Sentiu no lábio molhado o sabor de um beijo roubado. Ficou sem ação.

A noite estrelada tornou-se palco de uma paixão momentânea. Cúmplice de dois amantes que se entregavam aos prazeres da carne.

Um beijo de despedida. Nenhum número.

Qual era mesmo seu nome?

quarta-feira, outubro 01, 2008

Papo de Van

O som rolava alto no mp3:

“Nada nessa vida é em vão, pense no vão dessa canção...” E dalhe solo de guitarra.

Ninguém o incomodava. Mas vez por outra baixava o som para pescar algum papo interessante. Afinal, escutava aquelas músicas diariamente.

“Tri, tri. É leque, essa é a parada, vô pega essa mina de jeito e....” Um playboy falava ao nextel para quem quisesse ouvir.

Não, sem sombra de dúvidas, aumentar o som era a melhor opção.

“... e não diga que ela foi feita em vão!”

Pouco tempo depois, apurando melhor os sentidos, deu para perceber que ali do lado, uma menina de seus 25 anos, rechonchuda, poderia lhe dar o passatempo daquela viagem pelas engarrafadas ruas do Rio. Buscava mais um capítulo da novela da vida real.

Baixou o volume.

“Mas Bê, tá atrasado. Tô esquisita. E se...”

Bãmmmm! O carro detrás enfiou a mão na buzina e iniciou um coro estridente: Bã, bã, bã, bãmmmm!

Desgraçado. E se... Como assim? Queria saber mais.

“Mas Bê, não sei... A gente fez isso junto, você tem que me ajudar.”

Sim, estava começando a ficar claro. Era um daqueles capítulos decisivos. Baixou mais um pouco o som. Continuava com o fone apenas para disfarçar, mas na verdade a sua audição captava coisas bem mais interessantes do que aqueles velhos e conhecidos acordes.

A menina começou a chorar, baixando o tom de voz:

“Acho que vô tirar. Não tem jeito... Que, tá louco! Tem dinheiro pra isso não. É só tomar um copo de Coca-Cola com...”

Bãmmmmmmm! Mais outra barbeiragem do piloto.

“Mas...” Desatou a chorar.

Percebeu que ali ao seu lado acabava de ser julgado um indivíduo que ainda nem nascera. Que nem ao menos havia tido uma chance de se defender. Era fato consumado: aquela criança não viria ao mundo.

Como o ser humano poderia ser capaz de tamanha brutalidade?

A turbulência do trânsito, o som, as pessoas indo e vindo na rua... Todos estavam indiferentes àquela notícia aterradora. Nem tinham conhecimento. A vida seguia sem pausa. Sem dó.

Tentou aumentar o som para se livrar daquele sentimentalismo efêmero. Também queria continuar ignorando. O aparelho indicou: low batt. Droga. Seria obrigado a pensar insistentemente naquilo até o resto da viagem.