sábado, agosto 19, 2006

Volta

Agora só restam
olhos para o outro.

Minha luz
já não te alumia.
Meu fogo
já não te esquenta.

Nem ao menos
sentes pena de mim.
Apenas me ignora.

Me cospe, me ama.
Me beija de novo.

Com o leão na cabeça

Era um redator veterano. Um autêntico publicitário sem diploma com seus 20, quase 30 anos de carreira. Tinha visto de tudo nesse mundinho: a ascensão do garoto chamado Washington, a invasão das multinacionais e as posteriores fusões com as nacionais, a publicidade do Rio sendo maior que a de São Paulo,... Escreveu inclusive na ditadura. Treze leões em Cannes, uma centena de shorts lists e inúmeros outros prêmios conquistados em diversas partes do planeta. Um verdadeiro mago da publicidade nacional. Uma espécie de papa.

Há tempos, tinha se encostado como VP de criação em uma agência do Rio – perto de casa que é pra não cansar. Afinal, a época de virar noites já havia passado. Mas mesmo assim continuava a escrever com maestria:

- Valtinho, tô precisando de um título. O estagiário não está muito inspirado, hoje.

Enquanto o outro falava, ele já pensava no produto, no brienfig que já tinha visto uma vez, a pertinência e pá! Menos de cinco minutos:

- Nossa! Era exatamente disso que eu estava falando. Sensacional! Valeu.

E assim como esse pedido, chegavam vários:

- Valtinho, tô sem um conceito bom pra essa campanha para lançar uma nova frauda hidratante para bebês com bunda ressecada.

Quinze minutos mais tarde: pow!

- Do caralho!

Chegava o coroa com um conceito que amarrava uma campanha de trinta peças.

Era assim a mais ou menos 10 anos, quase 20. O cara era bom mesmo. Tinha seu nome estampado em quase todas as edições dos anuários de propaganda do Brasil. CCRJ, CCSP, CC não sei mais o quê. Viu o ápice, viu a recaída e agora assistia com uma certa satisfação de pai, a estabilização da propaganda nacional.

Dia desses, acordou meio indisposto, mas mesmo assim leu os costumeiros cinco jornais matinais, tomou seu café e foi pra agência. Chegando lá, ganhou mais um tapinha nas costas e o milésimo parabéns pelo milésimo prêmio que ganhara em algum lugar do planeta e que tinha saído naquela manhã em alguma fonte especializada. Soube de mais uma agência que ia fechar e teve a certeza de que, como de costume, o seu dono ia abrir mais outra na semana seguinte com outro nome. Previsível. Mas naquela manhã as coisas estavam diferentes para ele. O tapinha que havia levado nas costas não trouxe nenhum orgulho, nenhuma satisfação. Os cinco briefings que o atendimento lhe passou não lhe deram o menor tesão. Mesmo um sendo para indústria de bebidas, que era a sua especialidade. Achou que ali era o fim. E realmente a coisa começou a desandar.

Parou de freqüentar os botecos com o pessoal da criação, ir aos almoços do mercado, parou de conversar com qualquer um na rua, seu hobby predileto - achava que essa era a melhor escola de antropologia. Enfim, encheu-se. Perdeu o saco para a vida de VP/ bom vivan profissional. Cansou.

Começou a beber de fontes e referências equivocadas. Teve pesadelos com campanhas fantasmas que fez quando tinha 17 anos, sonhou até que tinha sido mandado embora e tinha começado a trabalhar em uma agência de varejo. Sua criatividade já não era mais a mesma. Ou passava demais ou travava naquela idéia mal resolvida. Só saía sheetstorm. Os pedidos para que ele resolvesse um problema começaram a sumir. Não fazia mais nada. Só recolhia o seu pomposo salário no final do mês. Perdeu a validade.

No festival de Cannes daquele ano, Valtinho resolveu fazer um protesto. Botou seus leões embaixo do braço, passou no circo mais próximo do lugar onde iriam acontecer as premiações e roubou outro leão. Dessa vez um de verdade. Levou o bicho pra porta do local e começou o seu discurso sobre a efemeridade da propaganda. Que ninguém tinha memória, que não lembravam mais dos publicitários do passado e etc. Depois começou a chorar. Sentia-se usado. Mais um dos milhares de produtos que ajudou a vender em toda a sua vida: descartável.

De repente, parou a choradeira e proferiu mais duas ou três palavras que ninguém entendeu muito bem, mas que um brasileiro que assistia a tudo atônito jurou que foi o seu slogan mais conhecido. Qual? Ele não lembrava. Pois foi justamente depois dessas palavras que Valtinho, como um artista circense experiente, abriu a boca do leão e meteu a cabeça dentro para o espanto da platéia. Não teve jeito, o leão fechou a boca de uma só vez. Era o fim de mais um publicitário brasileiro. Adeus prêmios. Adeus leões. Morreu como sempre sonhou: com um leão na cabeça em Cannes.

terça-feira, agosto 01, 2006

Mais uma dose

O Brasil não poderia ter perdido. Com a derrota perdi meu anel, minha dignidade e a desculpa esfarrapada para trabalhar meio expediente. Calma, eu posso explicar...

Naquele domingo cinza e frio posterior a derrota do Brasil, acordei na casa de um amigo como se tivesse acordado dentro do mar. Um mar típico dos nossos dias de inverno: com uma baita ressaca. Eram mais ou menos 14h quando eu abri meu primeiro olho e senti aquele gosto ruim de cabo de guarda-chuva na boca. Assim que o meu cérebro começou a pegar no tranco, pude perceber que o meu amigo narrava os fatos da noite anterior (péssima idéia).

- Não Frango. Ontem foi muito sinistro. A gente bebeu muito.

Bom, até aí normal. Sempre que eu me junto com eles acaba acontecendo isso.

- É, o Marrom ficou muito ruim.

Pra acordar na casa dele, de pilequinho é que eu não tinha ficado. Mas à medida que a narrativa avançava, as minhas lembranças iam sendo recobradas e a ressaca ia aumentando.

- Isso, vocês foram embora e a gente voltou de ônibus.

Puta merda! Essa foi a senha para a ressaca bater de vez. Levantei num pulo só.

- Como é que é? Voltamos de ônibus? Mas nós não estávamos de carro?

Pior que acordar de ressaca é ter que agüentar alguém rindo da sua cara pelas merdas que você não poderia ter respondido na noite anterior. Depois de momentos de suspiros e uma súbita vontade de me matar ali mesmo, admiti que não poderia voltar no tempo e que pra variar a merda já estava feita. Mas calma aí... Que merda? Então sair para beber com os amigos é merda, agora? Se ficou só na bebedeira, tá tranqüilo. Mas se por acaso... E se... Putz. Não é possível. Será que eu fiz algo demais? O problema daquela caipirinha, tequila ou qualquer destilado que você toma sorrindo é que eles te fazem esquecer a metade da missa. Por essas e por outras, comecei a fazer um esforço enorme para me lembrar do resto. Pra quê?

Comecei a questionar o meu amigo. Perguntei o que eu fiz, o que eu bebi, o que eu fumei, sei lá. O que eu tinha feito. Ele só ria. Desgraçado. O trabalho começou a ser mais doloroso do que eu imaginava. Tive que voltar às minhas últimas recordações do péssimo jogo do Brasil, que foram os meus últimos momentos sóbrio naquelas 48 horas passadas.

Lembro do primeiro tempo. Horrível. Jogo parado, cerveja quente. Uma porcaria! Segundo tempo: a mesma droga de jogo. A cerveja ainda teimava em ficar quente. Nos primeiros 10 minutos estava dormindo. Final do jogo: Brasil perdeu. O caô de patriotismo caiu por terra. É meu garoto, na próxima semana eu realmente teria que trabalhar o dia inteiro.

Ok. Enchamos a cara. O que mais a gente sabe fazer? Fogo na brasa, cerveja na caneca e bola pra dentro. Uma, duas, três, quatro... Perdi a conta. Várias canecas e lá se foi um engradado. Ih, acabou a Itaipava. E agora? Não tem problema, eu sei fazer um frozen ma-ra-vi-lho-so. E toma vodka. Meu fígado já pedia arrego. 20h. Hora de ir pra casa da patroa. Patroa? Longe. Do Recreio a Tijuca ia demorar no mínimo umas duas horas. Pra piorar, o ônibus passaria próximo ao Alzirão. Poderia sofrer represálias. Melhor não. Dormir na casa do meu amigo e ficar quieto era a opção mais prudente. Fiquei.

30 minutos depois dessa decisão, neguinho já veio com a idéia de girico:

- Barzinho na Freguesia? Vamos?

Na minha posição de convidado na casa dos outros não podia negar. Estava ao sabor da maré. Todos foram unânimes:

- Demoro!

- Agora!

Lá fomos nós. No caminho, pit stop na casa de um:

- Eu tenho um barzinho na minha casa que vocês vão gostar.

Mal sabia eu. O maldito bar era no quarto do muleque. Coisa de profissional. Um shot de tequila ouro. Outro de prata. Licorzinho? Por que não, me parece tão inofensivo. Coitado do meu fígado, o menino vinha trabalhando duro nas últimas semanas com todos esses jogos da Copa. Eis que surge uma ligação:

- É fulano. Quê? O bar que íamos está ruim. O que fazer?

Um grita:

- A solução é Guapito.

- Whath fuck?! Até então, eu não estava tão íntimo assim do recinto, mas poderia imaginar que brevemente estaria um pouco mais familiarizado.

Logo de início, descubro que a onda é pedir o balde de frozen. Ok. Que venha o bendito. Mais de 1 litro de cachaça. E desce a Solzinho:

- Não esquece o limãozinho. No início é sempre assim: tudo no diminutivo, nada lhe fará mal. Afinal, você não é mais um amador. Um franguinho qualquer.

A essas horas, o papo já estava animado, a birita já fazia bastante efeito e o som era completamente envolvente. Se botassem música baiana eu até ensaiaria umas coreografias. Estava igual a pinto no lixo, rasgando o salão. Desse momento em diante, não lembro de muita coisa. Tenho apenas flashes de memória. Lembro de ter acompanhado a galera em mais outra rodada de tequila. Dessa vez do lado de fora da boate para dar uma variada.

- Uma ouro, por fffffavorrr! Eiiiiiii! Cadê a minha tequiiiiila!

E lá veio o garçom caprichando. Pimba no balcão. Sal, limão, cara feia. Pimba pra dentro. Não estava mais pra brincadeira. O vento já soprava forte nas minhas ventas. Um peteleco e eu cairia. Aliás, foi exatamente isso que aconteceu. Não que eu me recorde, mas meus amigos juram que aconteceu. Permitam-me narrar essa cena mais detalhadamente...

Quase cinco da manhã, todos pagam a conta e saem da boate. Um resmungando por ter ficado com uma mulher obesa (ou com várias lasanhas a mais) e ela ainda ter reclamado por ele ter azarado outra na frente dela; outro reclamando do valor da conta que veio com 10%, mesmo bebendo tudo no balcão; um resignado depois da orgia e eu bêbado. Dez passos depois da porta da boate um vomita todo o churrasco de horas atrás, eu, com toda a minha desenvoltura, tropeço e caio no chão. Os outros dois riem à vontade.

Pois foi esse o saldo da merda do jogo do Brasil e do mole que o Roberto Carlos deu: menos R$ 50, uma calça podre como a de um mendigo, um anel que não sei onde foi parar, a minha dignidade abalada e muitas juras de “nunca mais beberei”. Bom, pelo menos até o próximo churrasco. “Por que que a gente é assim?”